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A farsa das gerações no mercado de trabalho

O mundo corporativo tenta juntar colaboradores de idades distintas em caixinhas estereotipadas. Mas a ciência mostra: não somos tão diferentes assim.

Por Sofia Kercher
Atualizado em 4 out 2024, 15h34 - Publicado em 1 out 2024, 17h13
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  • Estamos vivendo um momento inédito na história da humanidade: hoje, a força de trabalho é formada por indivíduos de cinco gerações diferentes. Alguns nascidos na era de Frank Sinatra, outros de Britney Spears; uns com aversão à calça skinny, outros a vídeos de 30 segundos. Pessoas que vieram ao mundo de 1945 a 2007 – todas habitando os mesmos escritórios mundo afora.

    Esse espaço gigantesco – consequência extraordinária de vivermos melhor, e por mais tempo – não vem sem suas dificuldades. Entre elas, as tentativas de estereotipar o comportamento de cada caixinha geracional das 9h às 18h, atribuindo características fixas a grupos imensos de pessoas só pelo fato de elas terem nascido na mesma época.

    Isso acontece de ambos os lados do espectro. Mas, como de praxe, é mais intenso com a geração que acabou de chegar para a festa: pessoas nascidas entre a segunda metade da década de 1990 e o início da de 2010, a GenZ.

    A situação se agravou a ponto de empresas anunciarem publicamente que estão priorizando contratar pessoas mais velhas até para cargos introdutórios, receosas de uma aparente falta de compromisso e despreparação crônica da nova juventude. Uma pesquisa do site Intelligent.com, feita com 800 profissionais no finalzinho do ano passado, descobriu que quatro em cada dez empregadores admitiam estar evitando contratar recém-formados. 58% ainda afirmaram que eles não estão preparados para o mercado.

    Apesar da narrativa hostil, estudos mostram que, quando o assunto é trabalho, não somos tão diferentes quanto imaginávamos. Na verdade, o que afeta o comportamento e as relações intergeracionais é acreditar que essas diferenças existem. Vamos lá.

    Ilustração, em fundo azul, com duas pessoas trabalhando com um notebook, gráficos e papéis.
    Daniela Diniz, do Great People/ Great Place to Work (GPTW): “Parte dos estereótipos serão repetições eternas. Porque estamos falando de juventude, não de gerações”. (Clara Candelot/VOCÊ RH)

    Comida, diversão, arte – e carreira

    Tentando entender se essas distinções geracionais são fato ou não, pesquisadores da George Washington University, nos Estados Unidos, realizaram uma meta-análise (compilando os resultados de uma pá de pesquisas) composta de 19 mil respostas.

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    Eles descobriram diferenças mínimas entre as gerações em relação à atitude de trabalho (leia-se, satisfação profissional, comprometimento com a empresa, intenção de rotatividade e por aí vai). Embora indivíduos pudessem sentir preferências, interesses e necessidades diferentes ao longo da vida, as distinções baseadas única e exclusivamente em recortes de idade ou geração eram pífias – em muitos casos, zero.

    O detalhe é que essa análise foi feita com quatro gerações – é de 2012. Foram consideradas a Geração Silenciosa (nascidos entre 1925 e 1945), Baby Boomers (1945 a 1964), Geração X (1965 a 1980) e Millennials ou Geração Y (1981 a 1995). Mais uma prova de que essas críticas geracionais não são exclusivas aos GenZ – mas mais sobre isso adiante…

    Outra meta-análise de 2016 feita por estudiosos da Wayne State University (também nos EUA) tentou entender se essa argumentação tinha ou não fundamento com um recorte mais específico: ética de trabalho. O estudo queria pôr à prova a narrativa de que Baby Boomers tinham uma ética profissional mais rígida do que os Millennials. Spoiler: eles não encontraram correlação alguma.

    Beleza, a novíssima geração não está incluída em nenhum desses balaios – com certeza tem algo diferente com ela, certo? Não é por aí. Quem também vai nos ajudar nessa missão é a pesquisa Carreira e Sonhos, da Cia de Talentos. O levantamento, que nasceu há 23 anos (GenZ também, portanto), mapeia expectativas de carreira e empresas dos sonhos de estudantes e profissionais anualmente.

    Em 2023, os mais de 70 mil entrevistados foram divididos em três grupos: jovens (aqueles que estão adentrando agora o mercado – GenZ entra aqui), média gestão e alta liderança. Um dos focos da pesquisa é entender quais as prioridades dos trabalhadores, com a seguinte pergunta: o que é mais importante na sua vida?

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    As respostas (como você pode conferir na tabela abaixo) destoam minimamente entre os grupos. Todos almejam qualidade de vida acima de tudo, um bom relacionamento com a família e segurança financeira, e só depois o sucesso profissional. Comida, diversão, arte e carreira – necessariamente nessa ordem.

    “A geração anterior tem mais tolerância, é natural – está em um momento de vida diferente. Mas, via de regra, as prioridades são iguais”, aponta Paula Esteves, Co-CEO da Cia de Talentos.

    Tabela, fundo verde, com resultado de pesquisa de satisfação na vida.
    (Camila Leite/VOCÊ RH)

    Viés cognitivo

    Claro: a nossa intenção não é dizer que as diferenças não existem. Afinal, as pessoas são impactadas pelas condições econômicas, políticas e sociais de suas épocas – coisa que variou muito nas últimas oito décadas. E isso, inevitavelmente, molda a forma como elas enxergam e se relacionam com o trabalho.

    Mas dá para a gente ir além. Pesquisadores hoje argumentam que o problema não está nessas diferenças de fato – e sim em acreditar e reiterar que elas existem. É o famigerado viés cognitivo. Ele acontece quando um padrão de pensamento acaba distorcendo nossa percepção de coisas que vivemos.

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    Para entender o viés cognitivo das gerações, precisamos analisar um fenômeno relativamente novo da psicologia: os chamados metaestereótipos de idade. Ela examina o que acreditamos que os outros acham de nós baseado em nossa faixa etária.

    Em um artigo da Harvard Business Review, a psicóloga e pesquisadora Eden King argumenta: “Os funcionários provavelmente estão tendo pensamentos impulsivos sobre como as outras pessoas devem ser (estereótipos) enquanto simultaneamente assumem que as mesmas pessoas estão fazendo suposições sobre eles (metaestereótipos)”.

    A especialista cita uma pesquisa de dez anos atrás, feita com cerca de 250 trabalhadores. A ideia é que eles descrevessem qualidades que podem ser verdadeiras para pessoas de outras faixas etárias e qualidades que outras pessoas podem descrever sobre suas próprias faixas etárias.

    Baseado nas respostas, o levantamento concluiu que os trabalhadores (de todas as idades) acreditavam que os outros os viam de forma muito pior do que eles realmente veem. “Esses casos confirmam que nem os estereótipos relacionados à idade nem os metaestereótipos são precisos”, conclui Eden.

    Em suma, ficar reiterando esses padrões é o que faz com que eles existam, não o contrário. É um jogo psicológico: já que todos esperam esse comportamento de mim, o melhor a fazer é assumi-lo, e pronto. Assim, as caixinhas geracionais vão ficando cada vez mais demarcadas, e as relações de trabalho entre elas, cada vez mais difíceis.

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    Ilustração, em fundo azul, de uma senhora segurando uma pasta.
    Pesquisadores argumentam que o problema não está nas diferenças mas em acreditar e reiterar que elas existem. É o famigerado viés cognitivo. (Clara Candelot/VOCÊ RH)

    Na minha época…

    Essa batelada de dados está aí para nos mostrar uma realidade que existe desde que o mundo é o mundo (e o trabalho é trabalho): gente que está no mercado há mais tempo implicando com quem está chegando agora.
    Dá para ir longe com essa história.

    Em 1894, um jornal local do Kansas publicou um editorial sobre greves que estavam acontecendo nas minas de carvão da região, dizendo: “Está evidente que ninguém mais quer trabalhar nestes tempos difíceis”.

    A argumentação é a mesma há 130 anos – até mais. “Parte dos estereótipos serão repetições eternas. Foi com X, foi com Y, foi com Z e será com Alpha [2020 para frente]. Porque estamos falando de juventude, não de gerações”, afirma Daniela Diniz, diretora de conteúdo e relações institucionais do ecossistema Great People / Great Place to Work (GPTW).

    Por isso os números são tão preocupantes – especialmente os citados lá no comecinho da reportagem, mostrando que “recém-formados não estão preparados para o mercado”. Mas é claro que não estão. É justamente para isso que os cargos introdutórios servem – para que a molecada aprenda, absorva e amadureça com ajuda de quem tem muito mais experiência.

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    As especialistas concordam que há uma narrativa subliminar perigosa escondida embaixo dessa argumentação: o medo da mudança. Aí, sim, há um aspecto que difere essa geração: questões sociais, raciais, de gênero, preocupações com impacto ambiental… isso precisa ressoar dentro das organizações. “Nesse contexto, fechar as portas para a Geração Z é fechar as portas para o futuro”, diz Paula Esteves – uma furada em todos os aspectos.

    Ilustração, em fundo rosa, com três pessoas trabalhando com computadores e gráficos.
    GenZ para cá, Millennials para lá, Baby Boomers acolá… No fundo, todos nós queremos a mesma coisa: remuneração e horários justos, qualidade de vida, propósito no trabalho. (Clara Candelot/VOCÊ RH)

    Construindo pontes

    Dito tudo isso, há um dado alarmante na pesquisa da Cia de Talentos: a apatia. Na pesquisa Carreira e Sonhos, os níveis de apatia dos jovens chegaram a 40% – algo inédito até para a juventude. Segundo Paula, essa epidemia do desengajamento é um reflexo do cenário macro. Crise econômica e climática, desemprego, pandemia, crise de saúde mental, tecnologia enquanto ameaça… tudo isso refletiu no comportamento de todas as pessoas, mas de modo mais intenso na juventude (natural). Especialmente em sua visão de futuro (ou falta dela), o que leva a índices maiores desse sentimento ruim.

    Além disso, sabe aquele papo de que “Geração Z não quer liderar?”. Pois bem: ele também foi identificado pela pesquisa na média gestão (22%) e na alta liderança (26%). Isso mesmo: muitos entrevistados afirmaram que estão liderando sem nenhum interesse em fazê-lo. E o impacto nos jovens é perceptível.

    É aí que, para Paula, mora a solução. Ela coloca a responsabilidade nessa liderança de construir essas pontes, dando propósito ao trabalho em toda a pirâmide hierárquica da empresa – e todas as idades. A executiva reforça isso no contexto híbrido, onde a maior parte dos GenZ aprenderam a trabalhar. “Os jovens entram na força de trabalho
    sem entender que o que eles estão fazendo faz parte de um contexto maior. Não há sensação de pertencimento, não há referência. Precisamos criá-la”, finaliza.

    Daniela, por sua vez, atribui a responsabilidade à área do RH (alô, você que está lendo por aí). “A gestão de pessoas parou de ser algo massificado para se tornar mais customizada, individualizada. Eu preciso enxergar esses colaboradores por quem eles são, dentro daquele contexto”, argumenta.

    Enfim, as alternativas são múltiplas. O importante mesmo é mostrar que, no fundo, todos nós queremos a mesma coisa: remuneração e horários justos, qualidade de vida, propósito no trabalho. Queremos respeito, queremos liberdade, queremos viver bem, da forma que acharmos melhor. A banda Titãs já cantou a bola, como a gente já disse na reportagem: comida, diversão e arte. A gente quer inteiro, e não pela metade.

    E vem mais por aí, como afirma Daniela Diniz, da GPTW: “A cada nova geração, aumentamos um pouco essa lista. Se estamos falhando em um desses pilares, estamos falhando com todos”. Independentemente do ano em que nasceram.

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    Esta matéria é parte da edição 94 (outubro/novembro) da Você RH. Clique aqui para conferir outros conteúdos da revista impressa.

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