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Autistas no mercado de trabalho: desafios e soluções

Estima-se que 85% das pessoas com o Transtorno do Espectro Autista (TEA) estejam desempregadas no Brasil. Entenda quais são as principais dificuldades desses profissionais – e saiba como construir um ambiente corporativo mais amigável para eles.

Por Luisa Costa
Atualizado em 11 jun 2024, 10h35 - Publicado em 3 jun 2024, 17h05

Desde pequeno, Caio Bogos ouve que é curto e grosso. Não coloca panos quentes em nada. É objetivo demais e flexível de menos. Ele escutou essas críticas na escola, e no mercado de trabalho não foi diferente. “Minhas avaliações de desempenho eram sempre iguais: resultados em nível técnico muito bons, comportamento insatisfatório.” Seria Caio um causador de intrigas, organizador de motins? Nada disso. O que ele sempre escutou de seus gestores foi: “Você tem de melhorar sua comunicação” ou “interagir mais com as pessoas”. Ir a um happy hour, quem sabe…

Esse tipo de reclamação se tornaria um empecilho para a carreira de Caio, que não conhecia outras pessoas com dificuldades semelhantes. Ele se achava o problema – e se culpava por isso. Foi assim até pouco tempo atrás.

Em 2020, ele criou uma plataforma digital para acompanhar o desenvolvimento de crianças autistas. Era seu projeto de conclusão de curso (Tecnologia da Informação), que, na época, ficou entre as 30 melhores ideias de negócio na sua faculdade (Fiap, em São Paulo). Um ano depois, ele decidiu trabalhar com adultos autistas, reformulou o projeto e, então, fundou a empresa aTip, dedicada a incluir esses profissionais no mercado de trabalho.

Acontece que, após estabelecer certa proximidade com a comunidade autista, Caio começou a ligar os pontos. Percebeu que suas dificuldades para se relacionar com as pessoas e se integrar ao escritório eram típicas de indivíduos que se enquadram no TEA: o Transtorno do Espectro Autista. Ele sente, por exemplo, que tem muito menos disposição para socializar em comparação às pessoas neurotípicas: que se enquadram no padrão dominante (e esperado) de neurofuncionamento. Ele também tem alguma dificuldade para compreender a linguagem corporal de alguém – outra característica comum entre os autistas. Assim veio o diagnóstico.

Caio não enfrentou grandes problemas, ao longo de sua vida, para conseguir um emprego. Mas, infelizmente, ele é uma exceção. O IBGE estima que 85% dos autistas estejam desempregados no Brasil, embora eles sejam beneficiados pela Lei de Cotas, que determina uma participação mínima para pessoas com deficiência nas empresas. (Desde 2012, autistas são considerados, legalmente, pessoas com deficiência.)

Algumas razões para o desemprego generalizado são a ausência de suporte para esses profissionais e o preconceito, alimentado pela falta de conhecimento sobre o TEA. Mas há iniciativas, como a do Caio, tentando virar o jogo. Vamos lhe apresentar, leitor, as estratégias principais para tornar o escritório mais amigável para autistas. Mas, antes, você precisa entender por que se trata de um espectro.

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O básico sobre o TEA

Em duas décadas, o número de casos de pessoas autistas aumentou bruscamente. Nos anos 2000, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, agência governamental dos Estados Unidos) considerava que havia um autista para cada 150 cidadãos. Hoje, um para cada 36.

Especialistas afirmam que esse aumento aconteceu por uma melhora no diagnóstico: conforme disseminamos informações sobre o autismo, fica mais fácil detectar sinais dele, nos outros ou em si mesmo. Isso está relacionado, claro, ao fenômeno do diagnóstico tardio: cada vez mais adultos descobrem que têm a condição.

E quais são, então, os indícios? Pessoas autistas apresentam as seguintes características gerais: 1. dificuldade de comunicação, seja para começar e manter uma conversa ou para interpretar falas, gestos e expressões faciais; 2. problemas para socializar, por preferirem ficar sozinhas, por exemplo, ou se irritarem com ocasiões sociais; e 3. padrões fixos de comportamento, como movimentos repetitivos e interesse específico por certos assuntos ou atividades.

Colagem digital
O girassol é um símbolo usado no mundo todo para identificar pessoas com deficiências ocultas, ou seja, que não podem ser percebidas à primeira vista – como o TEA. O Estatuto da Pessoa com Deficiência reconhece esse símbolo desde julho de 2023. [Colagem: Camila Leite / Arte Você RH] (Colagem: Camila Leite/VOCÊ RH)
Pessoas autistas têm essas peculiaridades por causa de um desenvolvimento atípico do cérebro, com alterações que se concentram no córtex cerebral (responsável pelas emoções, linguagem e percepção), mas também em áreas como o cerebelo (responsável por nossas atividades motoras).

As características gerais da condição variam. E muito, seja na forma ou intensidade com que se manifestam. Veja só: o autismo é resultado da interação entre fatores genéticos e ambientais. Mas a hereditariedade tem um peso maior: o DNA seria responsável por 70% a 90% do risco de autismo. E a condição não está relacionada a variações em um gene, como acontece em algumas síndromes e doenças, mas em, pelo menos, 180 genes. 

Isso explicaria a diversidade: há pessoas em três níveis de autismo, que precisam do suporte de uma rede de apoio em grau menor ou maior. Por isso, a edição de 2013 do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, um guia publicado pela Associação Americana de Psiquiatria e reconhecido mundialmente, considerou que o autismo é um “espectro” – como um arco-íris, que essencialmente é uma coisa só (luz), mas também é uma gradação, formas diferentes (as cores, do vermelho ao roxo) da mesma coisa.

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Daí vem a máxima de que “cada autista é um autista”, com uma combinação única de características e necessidades. Há, por exemplo, pessoas com maior rigidez cognitiva, que não suportam mudanças inesperadas na rotina. Há quem tenha aversão a determinados sons, por conta da sensibilidade aguçada que o autismo proporciona. Também há gente como Caio, que hoje entende razoavelmente bem o que se espera dela em algumas situações sociais – mas fica sobrecarregada com interações muito longas.

Dificuldades no trabalho

Tudo isso pode transformar o escritório em um pesadelo. Pedro Lopez, por exemplo, é autista nível 1 de suporte. Hoje, ele tem sua própria empresa, onde tem liberdade para adotar políticas amigáveis para neurodivergentes. Mas afirma que já sofreu muito em empresas mais tradicionais pela dificuldade de entender conversas em grupo e pelo “cansaço absurdo” que interações sociais podem lhe causar. “Eu não durava em emprego nenhum. E, se eu durasse um pouco mais de três, quatro ou seis meses, ficava doente.”

Isso é comum: as dificuldades que os autistas e outros neurodivergentes enfrentam para se adequarem frequentemente colaboram para o desenvolvimento de quadros como ansiedade ou depressão. E esses transtornos mentais são mesmo mais frequentes entre eles. Estima-se que o índice de depressão em autistas, por exemplo, varia de 10% a 50%. Entre neurotípicos, o índice é de 7%.

E, quando falamos sobre o autista se adaptar ao ambiente, muitas vezes isso significa despender um esforço para mascarar a condição e não sofrer com o preconceito. É o caso de Thales Farias, que descobriu o TEA já adulto. “Eu hesitei por muito tempo quanto a falar ou não falar sobre o autismo, simplesmente por medo de rejeição e capacitismo”, ele afirma. 

No caso de Thales, um dos grandes desafios é a sensibilidade à luz e ao barulho, que volta e meia obriga que ele saia de um ambiente e se isole. “Antes de compreender completamente minhas limitações, crises sensoriais interrompiam meu expediente, deixando-me acuado e incapaz de funcionar plenamente.”

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Outra profissional autista, Gabrielle Ramos viralizou no LinkedIn com um vídeo de uma dessas crises, causada pelo excesso de barulho e interações no escritório. Era uma crise do tipo meltdown, em que o autista perde o controle sobre seus impulsos e emoções, podendo gritar, chorar ou até se tornar agressivo por conta da sobrecarga sensorial. (Existem também as crises shutdown, mais silenciosas e discretas, em que o autista parece se desligar ou se dissociar do ambiente.)

Na legenda do vídeo, compartilhado em 2021, Gabrielle conta que seu chefe a tranquilizou durante a crise, permanecendo ao seu lado e dizendo que ela poderia “voltar” em seu próprio tempo. Em seguida, substituiu a profissional na reunião em que ela iria comparecer pouco depois.

Ter uma atitude acolhedora como essa é fundamental para tornar um escritório mais amigável para profissionais que se enquadram no TEA. Não há receita de bolo, um manual para o ambiente perfeito, justamente por essa ser uma condição muito heterogênea. Mas existe uma série de boas práticas defendidas por especialistas no assunto – e aplicadas por empresas e consultorias especializadas. Vamos a elas.

Colagem digital
Cada autista é único, por isso as empresas precisam entender suas necessidades individuais para garantir sua inclusão. [Colagem: Camila Leite / Arte Você RH] (Colagem: Camila Leite/VOCÊ RH)

Boas práticas no escritório

Uma pesquisa da consultoria Maya em parceria com a Universidade Corporativa Korú, com 12 mil entrevistados, mostrou que 86,4% dos profissionais dizem nunca terem participado de treinamentos ou programas relacionados à neurodiversidade. E o primeiro passo para construir um mercado de trabalho mais inclusivo é, justamente, investir em informação. 

Todos os especialistas entrevistados pela Você RH defendem que ela é uma ferramenta importante no combate ao capacitismo, que rejeita e adoece os profissionais autistas. Por isso, além de conectá-los a empresas interessadas em neurodiversidade, consultorias como a Specialisterne e a Talento Incluir oferecem serviços focados em oferecer informação para os funcionários e lideranças – o que prepara o terreno para programas específicos de inclusão.

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A farmacêutica Takeda passou por um treinamento com a Specialisterne há dois anos para entender como acolher profissionais autistas e começou um projeto-piloto com a consultoria, preparando alguns setores para receber quatro pessoas. A companhia acabou efetivando os profissionais, segundo a executiva de RH Eliane Pereira, que deve o sucesso do programa ao letramento e ao engajamento da alta liderança. “Sem isso, nada se sustenta. Teríamos um piloto bonito, mas que não teria continuidade.”

A companhia tem salas de descompressão, espaços reservados e silenciosos para quem precisa se isolar por alguns momentos. Também determinou, ao início do programa, um “buddy” para cada neurodivergente – um funcionário responsável por acompanhá-los de perto e dar o suporte necessário. Especialistas defendem que um acompanhamento como esse, ou similar, é importante porque o autista pode perceber necessidades de adaptação com o passar do tempo.

Outra boa prática é manter uma rotina bem estruturada. Profissionais autistas costumam mostrar melhor seu potencial quando não recebem um monte de tarefas ao mesmo tempo, por causa da “disfunção executiva” característica do TEA: um déficit relacionado a habilidades de planejamento e organização. Manter um fluxo organizado; combinar prazos e equipes para os projetos de antemão, e estabelecer horários de entrada e saída bem-definidos podem ser práticas importantes.

Na aTip, também há uma atenção especial com as reuniões. Há sempre um encontro no começo e outro no final da semana que funcionam como pontos de checkpoint e ajudam a driblar a disfunção executiva, porque discutem prioridades e recapitulam o que já está feito. E nenhuma reunião tem mais de uma hora. Na mesma linha, o home office pode ser um ótimo aliado. Pedro Lopez, por exemplo, instituiu o modelo remoto em sua empresa sem pensar duas vezes.

Mas, como dissemos, não há receita de bolo. As práticas a serem adotadas podem ser muito simples, e dependem de cada caso. “Por mais que a empresa se organize para receber autistas, o diagnóstico de uma pessoa diz pouco sobre ela, porque cada autista é único”, afirma Fábio Coelho, psicólogo e sócio-diretor da Academia do Autismo, instituição de ensino dedicada à condição. “A empresa precisa entender quais são as demandas daquela pessoa, tentar flexibilizar processos para melhorar sua adaptação, fazer um bom treinamento no começo… Essas práticas individualizadas garantem a inclusão efetiva desse colaborador.”

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Esse movimento pode, inclusive, melhorar a vida de outros funcionários, que podem se descobrir autistas ou sentir abertura para compartilhar seu diagnóstico de TEA. 

Garantir a inclusão, em suma, é bom para todo mundo. Não só porque uma comunicação mais objetiva e demandas mais organizadas são inegavelmente melhores no trabalho, e para a equipe toda, mas também pelo fato de que investir em diversidade, de maneira consistente, significa conseguir equipes mais inovadoras e produtivas, capazes de atender a uma sociedade de múltiplas faces – e capacidades. 

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Colagem digital
(Design e colagem: Camila Leite/VOCÊ RH)

Agradecimentos: Andressa Destido dos Santos, coordenadora de inclusão profissional na Specialisterne Brasil; Fabiana Montes, gerente de recrutamento da EY; Guilherme Leite, analista de Data, Digital, & Technology da Takeda; Jéssica Borges, consultora na Talento Incluir; Katya Hemelrijk, CEO da Talento Incluir; Marcus Labigalini, locutor do programa de rádio Apenas Acontece, sobre parentalidade neuroatípica; Mônica Carvalho, executiva de RH especialista na inclusão de autistas no mercado de trabalho; Wolf Kos, presidente do instituto Olga Kos de Inclusão Cultural.

Este texto faz parte da edição 92 (junho/julho) da Você RH. Clique aqui e confira os outros conteúdos da revista impressa.

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