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Ética: o que você faria se encontrasse uma carteira sem ninguém notar?

No livro "O Anel de Giges", o economista Eduardo Giannetti debate os limites da honestidade quando não há censura social. Leia um trecho

Por Redação
Atualizado em 23 out 2024, 13h27 - Publicado em 3 out 2021, 07h00
Imagem mostra duas mãos segurando uma carteira marrom cheia de dólares.
 (Allef Vinicius/Unsplash)
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No segundo livro de A República, de Platão, existe uma fábula famosa. A história discorre sobre o anel de Giges, um artefato altamente sedutor que dá às pessoas que o usam o poder de se tornar invisíveis enquanto cometem atos injustos e coletivamente prejudiciais, mas que resultam em grandes benefícios pessoais. O economista e escritor Eduardo Giannetti usa essa metáfora em sua nova obra, O Anel de Giges, que discorre sobre questões de ética e de honestidade. O autor debate, principalmente, as consequências morais que surgem quando as pessoas agem e tomam decisões sem a vigilância da sociedade ou de terceiros. No trecho a seguir, a discussão gira em torno do que nos leva a devolver (ou não) uma carteira encontrada por acaso.

Trecho do livro

Carteiras abandonadas, honestidade revelada

A presunção de confiança permeia as dobras do cotidiano. Cada um pode observar por si. O que nos dá a segurança de que as pessoas com quem lidamos na vida prática – nas relações familiares e pessoais, no comércio e nas empresas, nas organizações civis e no setor público – são, de um modo geral, confiáveis? O que nos garante, se é que podemos ter essa garantia, que elas não mintam, trapaceiem ou burlem as leis em benefício próprio, sempre que a chance de fazê-lo com expectativa de impunidade se ofereça?

O repertório é vasto. Nenhuma função ignora a fraude; nenhum cargo está imune à corrupção; nenhuma profissão está livre de malícia. Como estar seguro, por exemplo, de que o avião no qual embarcamos recebeu manutenção adequada; de que o médico não tirará proveito da nossa vulnerabilidade; de que o cônjuge não mente sobre a viagem a trabalho; de que a cozinha do restaurante foi devidamente limpa; de que o combustível não foi adulterado; de que o aluno não plagiou a tese; de que o motorista do ônibus não está alcoolizado; de que a seguradora não torrou o dinheiro do prêmio; de que o gari não se livrou do lixo no bueiro; de que o patrão não fraudou a Previdência; de que o gerente do banco não cumpre metas às minhas custas; de que o resenhista leu de fato o livro que demoliu (ou louvou); de que o juiz não recebeu propina; de que os impostos pagos não foram desviados?

A lista é interminável, mas o ponto decisivo é o mesmo. A presunção de confiança nas relações interpessoais é a argamassa do edifício social. Ela é a liga que mantém coesa a complexa e interdependente teia da vida em sociedade. Se as pessoas passassem a agir de forma tenaz e calculadamente oportunista a cada passo; se resolvessem nunca dizer a verdade ou manter uma promessa a não ser que lhes parecesse vantajoso; se decidissem furtar, lesar e trapacear sempre que o valor esperado do crime (risco de punição incluído) superasse o valor esperado da alternativa, então o grande, o imenso tecido da sociedade humana prontamente se esgarçaria e rebentaria em retalhos.
Embora as leis e sua rigorosa aplicação sejam alicerces indispensáveis para a vida em sociedade, elas não dão conta sozinhas da tarefa. Por mais rigoroso que seja o arcabouço da Justiça – a Constituição e o Código Penal, a fiscalização e a punição -, ele não seria capaz de preservar a sociabilidade humana em condição minimamente estável e ordenada se a confiança que nos sentimos motivados a depositar uns nos outros na vida prática se visse reduzida a pó.

Frente a essa contingência, nem o mais opressivo Estado totalitário – munido do que há de melhor em tecnologia de vigilância, monitoramento e repressão – estaria apto a evitar o colapso do edifício social: com o estoque de confiança erodido a zero, os membros da elite governante não poderiam confiar uns nos outros, tampouco em que as ordens por eles expedidas seriam cumpridas pelos oficiais de Justiça e agentes do aparelho repressivo. Chernobil moral.

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Até que ponto é razoável supor que a adesão a normas de veracidade e honestidade sobrepuje, em situações reais, o autointeresse crasso e o apelo da vantagem pessoal em prejuízo da ética, mesmo quando há certeza da impunidade? Quão robusto é o estoque de confiabilidade interpessoal em diferentes culturas e regiões do mundo? Por que restringimos o nosso egoísmo e fazemos o que nos parece moralmente certo, mesmo em situações nas quais o preço da conduta oportunista é zero? Existe um limiar ou gatilho a partir do qual a tentação derrota a honestidade?

Um abrangente experimento de campo simulando uma situação concreta da vida real e publicado na revista Science em 2019 buscou responder a essas questões. Realizado em 355 cidades de 40 países (nas cinco a oito maiores cidades de cada país), o trabalho investigou como reagem pessoas comuns diante de uma mesma situação: a opção entre devolver e não devolver uma “carteira perdida”.
O protocolo do experimento (repetido com 17.303 carteiras, 400 observações em média por país) consistiu no seguinte roteiro. O pesquisador adentra o saguão de um estabelecimento privado ou público (agência bancária, hotel, teatro, museu, delegacia, posto dos correios ou repartição) e dirige-se ao funcionário no balcão de atendimento dizendo haver encontrado uma “carteira perdida” na calçada em frente. Ele deposita a carteira sobre o balcão, avisa que está com pressa e pede ao funcionário que cuide do assunto, pois carece de tempo; incontinente ele se despede sem dizer mais nada e sem deixar contato.

Em cada carteira consta: um cartão de visita com o nome (fictício, em língua local) e o e-mail pessoal do proprietário, uma lista de compras e uma chave. A única diferença é a quantia de dinheiro que há nelas: algumas estão vazias ao passo que outras contêm 13,45 dólares em moeda local (ajustados pela equivalência do poder de compra naquele país). Em três países selecionados (Estados Unidos, Reino Unido e Polônia) o experimento foi replicado com a quantia de 94,15 dólares por carteira em moeda local (idem). O prazo de espera para a devolução foi estipulado em até 100 dias.

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O que esperar dos receptores? Os resultados contradizem frontalmente as previsões da teoria econômica padrão – e dos economistas consultados. Pelo modelo da escolha racional, o comportamento humano obedece à lógica do autointeresse: quanto maior a vantagem financeira, menor a propensão à conduta honesta e menor a preocupação com o bem-estar dos demais. Instados a prever o comportamento dos participantes no experimento, cerca de dois terços dos 279 economistas americanos no topo da carreira entrevistados, assim como o público leigo, prognosticaram que as carteiras vazias seriam devolvidas em maior proporção que as outras e que a taxa de devolução cairia em linha com a soma de dinheiro em jogo.

Justamente o contrário dos resultados obtidos: a média de devolução das carteiras com dinheiro (51%) superou a das carteiras vazias (40%). Embora a taxa de devolução tenha variado entre os países (atingindo 70% na Suíça e na Noruega ante cerca de 20% na China e no Marrocos), o padrão foi uniforme em 38 deles (Peru e México foram os únicos em que as carteiras vazias restituídas superaram as outras). O aumento absoluto da taxa de devolução das carteiras com dinheiro foi semelhante em todos os quartis dos países pesquisados, e a percentagem de carteiras contendo dinheiro, mas devolvidas sem ele, foi quase nula (2%).

A variante do experimento com quantias mais elevadas nos três países selecionados confirmou o padrão básico: a taxa média de restituição aumentou de 46% (carteiras vazias) para 61% (quantia regular) e 72% (carteiras com 94,15 dólares, montante sete vezes maior que na primeira fase). Quanto maior o incentivo monetário à desonestidade, maior a preferência revelada pela ação honesta.
Como entender o resultado? Teriam os participantes agido por receio de punição ou constrangimento? Os autores do estudo tiveram o cuidado de controlar os resultados a fim de verificar se a presença de outras pessoas no instante do recebimento das carteiras ou a existência de câmeras de CCTV no recinto teriam interferido no comportamento, mas nenhum efeito foi constatado. Também não foi encontrada nenhuma evidência de que uma eventual expectativa de recompensa pela devolução das carteiras tenha alterado a conduta. Os participantes agiram como lhes pareceu melhor, sem medo de represália ou esperança de lucro.

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A explicação, propõem os autores, reflete a resultante de dois vetores motivacionais agindo em direções conflitantes: o econômico e o psicológico. De um lado, a vantagem financeira (ficar com o dinheiro) e o custo de entrar em contato com o dono da carteira (no caso ínfimo, um simples e-mail). E, de outro, a preocupação com o bem-estar alheio (altruísmo) e a aversão a sentir-se como um ladrão ou como alguém de caráter duvidoso (autoimagem). A prevalência de um lado da equação implica algum sacrifício do outro – e vice-versa.

A devolução da carteira dependerá da força relativa desses dois vetores conflitantes. Quando o custo psicológico de saber-se fazendo mal a um terceiro e/ou de sentir-se um ladrão supera o benefício proveniente do dinheiro apropriado, a carteira é devolvida: daí o retorno espontâneo de mais da metade delas. E mais: como a impressão de que se está prejudicando alguém e como a sensação de que se é um ladrão aumentam pari passu com o montante de dinheiro em jogo, quanto maior o valor na carteira, maior também a taxa de devolução, o que teria sido evidenciado pelos resultados obtidos no experimento com somas mais polpudas nos três países selecionados.

SERVIÇO
O Anel de Giges
Autor: Eduardo Giannetti
Editora: Companhia das Letras
Preço: 69,90 reais
Páginas: 320

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